Analistas da Refinitiv se debruçam sobre o impacto do Plano REPowerEU, da União Europeia, na transição energética global e como poderá contribuir para a proliferação das energias renováveis até 2030.
- O Plano REPowerEU pode aumentar significativamente a produção de energia renovável até 2030.
- De acordo com o modelo de descarbonização que estamos seguindo, demorará um pouco até que possamos abandonar o gás por completo. Isso porque, com o abandono do carvão, linhito e também das usinas nucleares, sobra cada vez mais para a energia a gás dar conta da demanda não atendida por energias renováveis intermitentes.
- Como a Europa se sairá na corrida pelas energias renováveis? E qual será o impacto do conflito na Ucrânia?
A guerra na Ucrânia deu um novo impulso à agenda de transição energética em toda a Europa, e, especialmente, na esfera da UE. A percepção de que o continente deve obter sua independência energética aumentou a motivação dos países para conduzir a chamada “transição limpa”. Assim, os formuladores de políticas públicas estão trabalhando para elevar as metas de energia renovável, impulsionando estratégias de hidrogênio e eletrificação em transporte e aquecimento.
Na Alemanha, a proposta de dobrar (!) a meta de energia solar para 2030 de 100 para 215 GW encontra-se sobre a mesa. E a França, por sua vez, aprovou recentemente uma lei que exige que os estacionamentos abertos sejam cobertos com painéis solares até 2028, medida que tem o potencial de adicionar 11 GW desse tipo de energia.
Uma visão comum em muitos países e especialmente no âmbito da União Europeia é que os obstáculos burocráticos para permitir a construção de parques eólicos precisam ser resolvidos com urgência e que, para levar adiante projetos de interconexão, a resistência de grupos de interesse locais terá que ser superada.
Como o Plano REPowerEU deve impulsionar a transição energética
O plano REPowerEU deve trazer mais ambição e financiamento para que a União Europeia desenvolva mais projetos e plantas de energias renováveis, hidrogênio verde e eletrificação.
Conforme declarado no site oficial da REPowerEU, o principal objetivo é acelerar a independência energética da UE para reduzir a dependência do gás. E, para financiar a iniciativa, a UE está disposta a ir bem longe, tendo, inclusive, proposto o carregamento antecipado de licenças de emissão de carbono dos EUA, o que significa que as licenças originalmente destinadas a serem leiloadas nos anos 2027-2030 seriam vendidas mais cedo.
Segundo os cálculos do REPowerEU, um maior desenvolvimento das energias renováveis certamente levará a uma descarbonização mais rápida. Mas, e se uma maior eletrificação acabar neutralizando esse impacto? Quanto “REpowering” ainda restaria?
Modelagem de sistemas de energia de longo prazo
O Power Research Energy Transition, da Refinitiv, tem se expandido desde o seu lançamento no ano passado, e hoje já inclui a simulação dos sistemas elétricos da Alemanha, França, Grã-Bretanha, Itália, Espanha, Áustria, Polônia, Bélgica e Holanda. Isso cobre cerca de 75% da atual geração de eletricidade da UE27, além do sistema de energia britânico.
Nosso modelo interno de preços futuros simula o envio e os fluxos de eletricidade (por hora) dos países já mencionados até 2030. Ele fornece preços de compensação de mercado por hora, geração por tipo de combustível, fluxos transfronteiriços e emissões, entre outros serviços.
Aplicamos condições meteorológicas reais observadas (temperatura, velocidade do vento e radiação solar) de 1991 a 2020, “repetidas” em anos futuros, resultando em trinta cenários com diferentes preços. Acreditamos que nesses trinta anos de dados meteorológicos, é possível observar uma ampla (embora não exaustiva) gama de possíveis constelações de temperatura, velocidade do vento e radiação solar, incluindo aquelas de clima extremo.
De que forma o REPowerEU ajudará a reduzir as emissões
Queremos avaliar como a iniciativa REPowerEU contribuirá para reduzir as emissões e a dependência do gás natural ao longo de toda a Europa. Nosso principal foco é a ambição desse projeto de expandir a meta de energia renovável além do que cada país havia planejado em suas respectivas metas de energia renovável para 2030.
Neste ponto, queremos destacar apenas o impacto do REPowerEU, deixando de lado iniciativas nacionais adicionais, como o “Easter Package” alemão.
De acordo com a Comissão Europeia, o plano REPowerEU elevaria a capacidade total de geração de energia renovável para 1.236 GW até 2030, em comparação aos 1.067 GW até 2030 previstos no “Fit for 55” (FF55) –que é a proposta da UE para atingir 55% de redução de emissões na Europa em relação a 2005.
Os 55% referem-se a todas as emissões da UE, tanto para os setores EU-ETS (energia e indústria) quanto para os setores não-ETS (transporte, edifícios, etc). Espera-se que os setores ETS (Emission Trading System ou, na tradução para o português, comércio de licenças de emissão de gases com efeito estufa) contribuam em maior grau para a meta de 55% com uma redução de 61 a 63% (mas as negociações ainda estão em andamento).
Para a concretização global do FF55, a Comissão Europeia simulou várias caminhos. Obviamente, a meta de 61% a 63% pode ser alcançada com uma combinação infinita de adições de ativos renováveis, com arranjos distintos de capacidade solar e eólica, diferentes graus de comutação de gás de carvão e eletrificação de aquecimento e transporte.
O cenário FF55 “EU MIX”, por exemplo, toma como base os 1.067 GW de capacidade instalada até 2030 referidos no documento REPowerEU, o que mais do que duplica a capacidade de 2020.
A capacidade renovável do caso base da Refinitiv é mais ou menos congruente com o cenário FF55 “EU MIX”. Isso porque aplicamos as metas nacionais, para as quais a nossa principal fonte é o “ENTSO-E Ten Year Network Development Plan (TYNDP)”.
Cenário REPowerEU da Refinitiv
Nosso Cenário REPowerEU é uma combinação de dois componentes. A parte “Renováveis Mais Fortes” de nosso cenário consiste em elevar em 20% até 2030 as metas eólicas e solares dos países em questão. Essa nossa proposta vai um pouco além daquela feita pelo REPowerEU; e também a estendemos à capacidade eólica no Reino Unido para implicar em ambições adicionais semelhantes. Isso significa que aplicamos a mesma suposição de crescimento adicional à energia solar e à eólica, embora haja um foco mais forte expresso no apoio à energia solar.
Ao mesmo tempo, queríamos avaliar o impacto do REPowerEU impulsionando uma eletrificação mais forte. Esperamos que metas mais altas de geração de energia renovável também estimulem o movimento de eletrificação. Isso também é mencionado no documento, sem estabelecer, contudo, objetivos explícitos sobre o crescimento da demanda total de energia.
A Comissão Europeia diz: “Acabar com a dependência da UE dos combustíveis fósseis russos exigirá um aumento maciço de energias renováveis, bem como eletrificação mais rápida e substituição de calor e combustível de origem fóssil na indústria, em edificações e no setor de transporte”.
No caso base da Refinitiv, espera-se, em primeiro lugar, que o aumento da demanda observado na última década continue até 2025; e, depois, que os ganhos de eficiência energética compensarão os impactos que a eletrificação contínua e o crescimento econômico terão sobre a energia.
A partir de 2026, acreditamos que a eletrificação dos transportes e do aquecimento comece a ultrapassar os ganhos de eficiência e implique em um moderado crescimento na demanda (1%).
Chamamos nosso segundo cenário de “Eletrificação +”, na qual aumentamos nossa taxa de crescimento da demanda (2026 a 2030) de 1% para 2%. Dessa forma, a demanda em 2030 seria 6% maior do que a esperada para 2023, o que se compara com o crescimento total da demanda de 4% em nosso caso base.
Assim, nosso cenário REPowerEU seria a combinação de “Renováveis Mais Fortes” e “Eletrificação+” –enquanto também calculamos as duas partes do cenário isoladamente para avaliar seu impacto.
Resultados do cenário REPowerEU
Em primeiro lugar, podemos dar uma olhada no impacto da geração de energia a partir de gás na Europa.
Em nosso caso base, a geração de energia a gás diminui em um ritmo muito lento até 2030. Aplicamos os preços futuros para carvão, carbono e gás e esperamos que a troca total para o gás seja retomada a partir de 2025.
Isso porque, com o abandono do carvão, linhito e também das usinas nucleares, sobra cada vez mais para a energia a gás dar conta da demanda não atendida por energias renováveis intermitentes.
Inclusive, em nosso cenário de “Renováveis Mais Fortes” é possível constatar que o aumento das renováveis sob o REPowerEU faria com que, em 2030, fossem gerados menos 77 TWh (-18%) de energia a gás. No entanto, se uma eletrificação mais robusta, como a prevista no cenário “Eletrificação+”, fosse atingida ao mesmo tempo, isso atenuaria bastante o impacto da substituição do gás. Para se ter uma ideia, a combinação desses dois cenários levaria a uma economia de apenas 12 TWh (-3%) de energia a gás em 2030.
Esperamos que as emissões de CO2 nos países cobertos pelo REPowerEU caiam mais da metade até o final da década, para 308 milhões de toneladas.
A contribuição adicional dos investimentos solares e eólicos da REPowerEU reduziria as emissões em mais 41 milhões de toneladas (-13%). Porém, se a demanda de energia crescer mais, em linha com nosso panorama “Eletrificação +”, esse impacto seria quase totalmente eliminado. A combinação dos dois cenários levaria a emissões quase inalteradas, de 306 mt.
Analisando mais uma vez o impacto das Fontes de Energia Renovável (FER) no consumo total, vemos que a parcela de FER pode passar de 44% para 52% apenas com o aumento de energias renováveis do REPowerEU. Entretanto, em combinação com o panorama “Eletrificação +”, a participação eólica e solar subiria para 50%, ou seja, 2 pontos percentuais a menos.
O caminho para a independência energética
As inserções extra de energia renovável no REPowerEU contribuirão para reduzir as emissões de CO2 e a dependência do gás. No entanto, se a demanda de eletricidade realmente for impulsionada pela eletrificação em grande escala, o impacto do REPowerEU poderá ser rapidamente cancelado pelo maior consumo energético que isso acarretará.
Portanto, as políticas que visam acelerar a eletrificação da sociedade também devem quantificar o impacto esperado na demanda de energia e fornecer transparência e análises sobre como a eletrificação pode retardar o caminho geral de descarbonização do setor elétrico.
Reconhecemos que, de acordo com o modelo de descarbonização que estamos seguindo, demorará um pouco até que possamos abandonar completamente o gás. Isso porque a energia a gás é cada vez mais empregada para substituir carvão e linhito, já que nem sempre podemos contar com as fontes de energia renováveis, que são intermitentes.
Enfatizamos a necessidade de encontrar outras alternativas para a queima de gás fóssil. Ainda não está claro quanto do suprimento geral de hidrogênio previsto para 2030 será dedicado ao setor de energia. Por esse motivo, em nosso caso base mantemos premissas bastante conservadoras de suprimento de hidrogênio e biometano em 2030.
Vemos, claro, que o Plano REPowerEU pode aumentar significativamente a participação de energia renovável em 2030. Contudo, também é importante enfatizar que a hipótese colocada em nosso cenário implica em um peso maior nos investimentos eólicos do que o REPowerEU provavelmente terá.
Se os investimentos forem principalmente para energia solar, a produção de TWh de nosso cenário estaria superestimando o aumento de geração antecipada por meio da REPowerEU. Em outras palavras, seriam necessárias muito mais adições de capacidade solar para atingir a geração renovável implícita em nossa análise de cenário.
Ainda caberá aos governos nacionais impulsionar a energia eólica em terra e no mar, removendo barreiras e resolvendo conflitos de interesse que precisam ser tratados em nível local. Isso permitiria que os fundos (da UE ou de qualquer outro órgão ou investidor) fossem para tecnologias eólicas com fatores de carga mais altos do que a tecnologia solar.
Uma maior participação do vento também contribuiria para diversificar o risco climático e impediria que o sistema de energia desenvolvesse uma dependência excessiva do sol –que sempre pode brilhar mais ou menos.
O Plano REPowerEU pode ter um impacto significativo na conquista da independência energética, mas os sistemas de energia europeus precisarão se preparar para o movimento de eletrificação até o final da década, e atrair muito mais desenvolvimento de geração e armazenamento.
Ao construir um ambiente favorável aos negócios e remover as barreiras legais, os governos estarão fazendo a sua parte para atrair investimento privado, muito além do que a REPowerEU pode oferecer.