Em meio às crescentes denúncias de pessoas submetidas a condições de trabalho análogas à escravidão no Brasil, o episódio do podcast de risco Desenrola Brasil, da Refinitiv, ajuda a traçar um panorama do problema no país e alertar as empresas sobre os riscos de negligenciar a due diligence de terceiros.
- Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), estima-se que em 2021 cerca de 50 milhões de pessoas viviam em condições de trabalho análogas à escravidão em todo o mundo.
- Há certas vulnerabilidades que levam esses indivíduos a serem explorados, e a maior delas é a vulnerabilidade socioeconômica.
- No Brasil, empresas que se envolvem nesse tipo de conduta podem entrar para a Lista Suja do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho e Emprego (TEM), o que será letal para a sua reputação.
Nos últimos meses, o tema “trabalho escravo” ganhou as manchetes dos principais veículos de notícias após o Ministério Público do Trabalho (MPT) denunciar o envolvimento de três grandes vinícolas brasileiras com 207 indivíduos resgatados de condições de trabalho análogas à escravidão em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. Assim que o escândalo veio à tona, as empresas saíram a público para explicar que os trabalhadores em questão não eram seus funcionários diretos, mas de uma terceirizada, e que ninguém tinha ideia de que algo tão horrível pudesse estar ocorrendo em sua cadeia de abastecimento.
Não adiantou. Elas foram obrigadas a firmar com o MPT um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) e assumiram 21 obrigações do que fazer (e não fazer) para aperfeiçoar o processo de tomada de serviços, com a fiscalização das condições de trabalho e direitos de trabalhadores próprios e terceirizados –além de pagarem R$ 7 milhões (divididos entre as três vinícolas) a título de indenização.
Esse caso recente é um exemplo perfeito dos riscos envolvidos nas cadeias de suprimentos e da importância de se manter um programa avançado de due diligence de terceiros. Mesmo que a companhia tenha condições financeiras para contratar uma boa assessoria jurídica para ajudá-la com os trâmites legais e com o pagamento das multas, há um tipo de prejuízo muito mais difícil de ser contabilizado no curto prazo: o dano à imagem da empresa, algo que pode pairar indefinidamente sobre uma marca que levou décadas para estabelecer um nome no mercado.
Foi com essa história ainda fresca na memória –e que precedeu uma séria de denúncias de condições de trabalho análogas à escravidão no Brasil nas semanas seguintes— que decidimos abordar esse tema em nosso novo podcast de risco semanal, o Desenrola Brasil. Para isso, convidamos Ruth Helena Alves da Mota, gerente da equipe global de analistas do World-Check, que nos ajudou a esclarecer as principais dúvidas sobre um assunto que deveria ter ficado no passado distante, mas, infelizmente, segue atual tanto em nossa sociedade quanto no resto do mundo. Confira a seguir os principais pontos abordados em nosso webinar e entenda como sua empresa pode ajudar a combater esse mal.
O que é, afinal, considerado “trabalho escravo”?
O artigo 149 do Código Penal Brasileiro define como condições de trabalho análogas à escravidão aquelas que têm os seguintes elementos: condições degradantes de trabalho que violam direitos fundamentais, ferem a dignidade e colocam em risco a vida e a saúde do trabalhador. Entre essas situações incluem-se jornadas excessivas de trabalho, ameaças à pessoa e à sua liberdade, privação do direito de ir e vir etc. “É importante frisar que essas condições podem ocorrer separadamente ou em conjunto. Ou seja, basta uma delas para caracterizar condição de trabalho análoga à escravidão –aliás, este é o termo oficial, já que ‘trabalho escravo’ remete à uma prática abolida no Brasil ainda em 1888”, explica Ruth Helena Alves da Mota.
A especialista do World-Check ainda destaca o fato de que, na maioria dos casos, os trabalhadores são forçados a seguir na atividade por meio de agressões, ameaças ou mesmo por terem “dívidas” com o patrão (este último motivo, inclusive, sendo uma das principais formas pelas quais as pessoas são mantidas nessa condição). “Também são muito frequentes as jornadas exaustivas, ou seja, quando se trabalha mais de 12 horas por dia, às vezes sem nenhum tipo de descanso. Isso, inclusive, acontecia com certa frequência na cidade de São Paulo, quando imigrantes, principalmente da Bolívia e do Peru, eram mantidos em condições análogas à escravidão no bairro do Bom Retiro para confeccionar artigos de vestuário”, alerta ela.
Segundo um levantamento recente do setor de moda, apenas 22% das marcas brasileiras de vestuário revelam dados a respeito das condições de trabalho de seus empregados –um número espantoso e que pode levar as empresas do setor a ter sérios prejuízos reputacionais e financeiros se não começarem a cumprir com os requisitos de transparência que o mercado exige atualmente.
Por que, em pleno século XXI, isso ainda acontece?
Quando ouvimos sobre casos de exploração como esses, uma de nossas primeiras reações (após a indignação) é pensar: “mas o que leva pessoas a serem enganadas dessa forma?”
Como foi dito em nosso webinar, a principal razão para trabalhadores caírem nesse tipo de armadilha é a ilusão de que vão viver em condições melhores, seja no exterior ou em qualquer outra localidade. “Há certas vulnerabilidades que levam as pessoas a serem exploradas, e a maior delas é a vulnerabilidade socioeconômica. As vítimas normalmente são pessoas desempregadas ou de baixa renda, e muitas delas não tiveram a oportunidade de estudar”, afirma a gerente global do World-Check.
Ou seja, por trás dessa mazela social encontra-se uma vasta rede criminosa que inclui desde indivíduos encarregados de identificar e aliciar cidadãos em condições vulneráveis até aqueles falso empresários que irão prendê-los em uma condição de exploração –aliás, esse é o mesmo caminho percorrido pelo tráfico de pessoas, prática que anda de braços dados com o “trabalho escravo”.
Durante o aliciamento costumam ser oferecidos passagens para o destino (seja ele no próprio país ou no exterior), documentos (na maioria das vezes, falsos) e acomodação. Mas, assim que os trabalhadores chegam ao local, percebem que as condições de trabalho são bem diferentes das que tinham sido prometidas, além de se verem às voltas com dívidas supostamente referentes à passagem, acomodação, alimentação etc. “De uma hora para outra, essas pessoas se percebem com dívidas que não podem pagar, num ciclo de exploração sem fim”, acrescenta Alves da Mota.
Esse é um problema global?
Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), estima-se que em 2021 cerca de 50 milhões de pessoas viviam em condições de escravidão em todo o mundo; em 2016, o número de escravizados era 10 milhões menor. Como explica a OIT, esse aumento ocorreu em um cenário de conflitos crescentes e mais complexos, degradação ambiental generalizada, migração induzida pelo clima, retrocesso global dos direitos das mulheres e impactos econômicos e sociais da pandemia de Covid-19.
No Brasil, foram resgatados 55 mil trabalhadores dessa condição entre 1995 e 2020. Desses, 92% eram homens, 22% trabalhavam em lavouras de cana de açúcar e, 31%, na atividade pecuarista. Entre eles, 32% eram completamente analfabetos e 39% não tinham ainda concluído a metade do ensino fundamental (o que bate exatamente com o que dissemos acima sobre a questão da vulnerabilidade).
De acordo com dados mais recentes da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE) –e compilados até o dia 20 de março de 2023—, 2008 foi o ano campeão de denúncias de trabalhadores nessa situação no Brasil, com 1.456 pessoas resgatadas. Em segundo lugar está 2023, com 918 indivíduos retirados dessa condição apenas nos três primeiros meses do ano, o que compõe uma assustadora média de 300 pessoas por mês, dez pessoas por dia.
O que acontece com as empresas envolvidas com trabalho escravo?
Como foi detalhado no webinar, o Ministério Público do Trabalho (MPT) é responsável por conduzir ações de busca e apreensão e libertação desses trabalhadores, quantificando e identificando os empregados encontrados. Em seguida, o Poder Judiciário Trabalhista pode pode celebrar um termo de compromisso de Ajustamento de Conduta, em que a empresa infratora se compromete a não reincidir nesse crime. Geralmente, ela também é obrigada a pagar multa rescisória ou uma indenização e regularizar a situação daquele trabalhador perante a lei. Além disso, pode ocorrer um ajuizamento de ação civil pública ou alguma outra medida judicial cabível –isso tudo sem falar nas consequências penais previstas no artigo 149 do Código Penal Brasileiro.
Ainda em 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso criou o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, formado por auditores fiscais do Trabalho, agentes do Ministério Público do Trabalho, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Ministério Público Federal. Esse grupo, que se reporta diretamente ao Ministério Público do Trabalho, tem hoje um papel de fiscalização muito importante, que ajuda a coibir esse tipo de crime.
Também foi implementado, em 2008, o Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, que garante ao trabalhador resgatado os direitos trabalhistas atrasados, como seguro desemprego, além da possibilidade de processar o empregador por danos morais. “Às vezes, inclusive, as empresas se antecipam a isso e já assinam um termo de compromisso de Ajustamento de Conduta para pagar esse tipo de indenização”, ressalta a especialista do World-Check.
Como sua empresa pode ajudar a combater esse mal?
Bem, antes de mais nada é importante lembrar que empresas que se envolvem nesse tipo de conduta podem entrar para a chamada Lista Suja do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho e Emprego (TEM) –algo que será letal para a sua reputação, que deixa uma mancha no nome e na história da organização que é quase impossível de apagar. E, ao contrário do que muitos pensam, para se ver nessa situação não é preciso que a empresa seja responsável diretamente pela exploração do trabalhador; basta contratar os serviços de um terceirizado que emprega trabalho escravo.
Portanto, em primeiro lugar, é essencial que as empresas investiguem cada elo de sua cadeia de suprimentos, estabelecendo para isso um programa eficaz de due diligence de terceiros, como os oferecidos pelo World-Check da Refinitiv. “De que adianta uma marca se dizer comprometida com direitos humanos e com a proteção dos direitos dos trabalhadores se não faz essa investigação básica?”, questiona Alves da Mota. Depois da due diligence, caso se constate que o terceiro em questão emprega trabalhadores em condições suspeitas ou pouco transparentes, é preciso relatar ao Ministério Público do Trabalho, que costuma apurar essas denúncias com muita seriedade.
Atualmente, os consumidores estão cada vez mais conscientes a respeito de questões ambientais, sociais e de governança (ESG), e vêm pressionando as marcas que consomem para que tenham maior cuidado com suas cadeias de suprimento. Em meio a esse novo cenário, um programa avançado de risco e compliance –que ajude a sua empresa a desviar de riscos como o envolvimento com trabalho escravo— deixou de ser mais uma obrigação regulatória e se transformou em condição básica para a sobrevivência de seu negócio. Pense a respeito!