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Guerra no “celeiro do mundo” gera temor de escassez global de alimentos

Enquanto milhões de cidadãos ucranianos abandonam suas casas fugindo dos bombardeios russos, habitantes de outras partes do mundo, como Egito, Líbano e Tunísia, também são ameaçados pela infame invasão comandada por Putin, que deverá gerar escassez de alimentos em inúmeros países em desenvolvimento.


Com a invasão russa à Ucrânia, grande parte das colheitas de trigo e de outros grãos do país –que atualmente é o maior fornecedor de alimentos do Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas (PAM)— deverão ser perdidas, colocando em risco milhões de pessoas em nações em desenvolvimento que dependem desses insumos para a sua sobrevivência.

Juntamente com a Rússia, a Ucrânia é hoje responsável por um terço da exportação mundial de trigo, cereal que foi plantado no outono passado (no hemisfério norte) e que, após um breve período de crescimento, se manteve adormecido para sobreviver ao inverno. Agora, para que o grão reviva, os agricultores precisam aplicar fertilizantes, que fazem com que perfilhos brotem dos caules principais. E, como cada talo pode ter de três a quatro perfilhos, isso aumenta exponencialmente o rendimento de trigo por talo.

Mas, com a guerra, os agricultores ucranianos, que produziram uma safra recorde de grãos em 2021, estão com dificuldade de obter fertilizantes, além de pesticidas e herbicidas. E, mesmo que houvesse suprimento suficiente dessas matérias primas, ainda faltaria combustível para abastecer tratores e outros equipamentos necessários para todo o processo.

Preços dos alimentos em disparada

Elena Neroba, gerente de desenvolvimento de negócios da corretora de grãos Maxigrain, com sede em Kiev, acredita que, se os fertilizantes não forem aplicados agora, a safra de inverno de trigo do país chegue a cair 15% em comparação aos últimos anos. Inúmeros agricultores, no entanto, alertam que a situação pode ser muito, muito pior. Segundo seus cálculos, o rendimento da atual safra de trigo pode ser reduzido pela metade, talvez até mais.

Além dos óbvios prejuízos para o setor agrícola e para a alimentação de uma população que já padece por falta de comida, água, energia e outros serviços básicos em meio a ataques contínuos a alvos civis, esse panorama terá implicações muito além das cidades sitiadas da Ucrânia. Isso porque nações como Líbano, Egito e Iêmen, entre outras, passaram a depender fortemente do trigo ucraniano nos últimos anos.

E, como se o cenário já não fosse suficientemente grave, a crise agrícola no país europeu que ficou conhecido como um dos maiores “celeiros do mundo” ocorre justamente quando os preços dos alimentos em todo o planeta já estão subindo há meses devido a problemas globais na cadeia de suprimentos que ainda são atribuídos à pandemia de Covid-19. Para se ter uma ideia da situação, as cotações dessas commodities já haviam atingido um patamar recorde em fevereiro e aumentado mais de 24% em um ano, segundo informações da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Agora, em decorrência da guerra, estima-se que os preços internacionais de alimentos e rações subam mais 20%, provocando um salto na desnutrição global (o valor do trigo já disparou, subindo 50% apenas neste último mês).

Subsídio de alimentos em risco

Grande parte da colheita da Ucrânia deveria ser exportada para o norte da África, Oriente Médio e Levante. De acordo com o PAM, mais de metade do trigo que o Líbano importa vem da Ucrânia. Na Tunísia, esse percentual é um pouco menor: 42%; e no Iémen, cerca de 25%.

Para alguns países, o aumento dos preços pode prejudicar tanto os governos quanto os consumidores que dependem de subsídios estatais de alimentos. Um desses casos é o Egito, que se tornou muito dependente do trigo ucraniano e russo ao longo da última década e subsidia grande parte do pão que é consumido pela população. “Assim, à medida que o preço do trigo sobe, maior a possibilidade de o governo elevar o valor dos pães”, detalha Sikandra Kurdi, pesquisador do International Food Policy Research Institute, em Dubai. Atualmente, o programa de subsídio alimentar egípcio custa aos cofres estatais cerca de US$ 5,5 bilhões por ano, mas permite que dois terços da população compre cinco pães por dia com apenas 50 centavos (de dólar) mensais.

Outros países em desenvolvimento que possuem subsídios semelhantes também enfrentarão dificuldades com o aumento dos preços do trigo. Em 2019, por exemplo, protestos contra o aumento do pão no Sudão contribuíram para a derrubada do chefe de Estado, Omar al-Bashir. “A subida dos preços dos alimentos acarretará em mais dívidas para esses governos ou em preços mais altos para a população, equação de difícil resolução”, afirma Kurdi.

Reserva de grãos para consumo interno

Enquanto Moscou insiste que está realizando uma operação militar especial para desmilitarizar e capturar nacionalistas perigosos e nega deliberadamente mirar civis e infraestrutura civil –apesar dos ataques documentados a hospitais, prédios de apartamentos e ferrovias—, a Ucrânia e boa parte do resto do mundo tentam evitar que dezenas de milhões de pessoas sofram escassez de alimentos.

Na sexta-feira passada, ministros da agricultura das sete maiores economias do globo discutiram em uma reunião virtual o impacto da invasão russa na segurança alimentar de dezenas de países e a melhor forma de estabilizar os mercados de alimentos.

Ao mesmo tempo, autoridades ucranianas dizem que ainda estão esperançosas de que o país tenha um ano relativamente bem-sucedido devido ao esforço dos agricultores do oeste do país, que, pelo menos até agora, permanece distante dos tiroteios. Mesmo assim, como precaução, já há medidas em vigor para proteger o suprimento doméstico, garantindo que a população da Ucrânia possar ser alimentada –mas que não deixa de ser outro possível golpe para as exportações.

Na semana passada, o ministro da agricultura ucraniano, Roman Leshchenko, confirmou que o país está proibindo o embarque de vários produtos básicos, incluindo trigo. Ele reconhece que há, sim, ameaça ao abastecimento de alimentos para a população e que o governo está fazendo o que pode para ajudar os agricultores. “Sabemos que o nosso estoque de comida depende do que hoje ainda se encontra nos campos”, disse Leshchenko.

Escassez de sementes e diesel

As exportações de grãos são a base da economia da Ucrânia e,  nas próximas semanas, os agricultores também deveriam começar a plantar outras culturas, como milho e girassol. O problema é que, até o momento, eles ainda estão com enormes dificuldades para obter as sementes de que precisam. Além disso, como explica Dykun Andriy, presidente do Conselho Agrícola Ucraniano, que representa cerca de 1.000 agricultores e controla cinco milhões de hectares, há falta de combustível, já que no momento o abastecimento do exército é prioridade. Portanto, a menos que eles consigam diesel para operar seus equipamentos, o trabalho agrícola na primavera será impossível, e as colheitas deste ano estarão condenadas. “Os agricultores estão desesperados. Há um grande risco de não termos comida suficiente para alimentar nem mesmo nosso povo”, disse Andriy.

A cerca de 200 quilômetros ao norte do porto de Odessa, no Mar Negro, o fazendeiro ucraniano Oleksandr Chumak afirmou que nestes dias há pouquíssima atividade em seus campos. Por falta de diesel, está tudo parado nos 3.000 hectares onde ele costuma cultivar trigo, milho, girassol e colza e, mesmo que combustível não fosse um problema, não haveria fertilizante para todas as suas plantações e muito menos herbicida. “Geralmente conseguimos de seis a sete toneladas (de trigo) por hectare. Este ano, acho que se renderem três toneladas por hectare, será muito bom”, desabafou Chumak. Ele também disse que continua esperançoso de que haja uma maneira de cultivar alimentos suficientes para alimentar seus compatriotas, mas que não deverá sobrar muito para ser exportado.

Oleksandr Chumak ainda conta que no norte da Ucrânia havia colegas retirando combustível de uma vala que ficou cheia de diesel após um ataque russo a um trem com vários vagões-tanque. E, segundo ele, nas áreas ocupadas perto de Kherson houve ainda agricultores que estavam retirando diesel de comboios russos abandonados.

Colheitas ameaçadas e porto parado no sul do país

A situação é especialmente crítica na cidade portuária de Kherson, no sul, o primeiro município ucraniano capturado pela Rússia após a invasão do país. Lá, o clima de primavera só faz aumentar a urgência dos agricultores, que precisam cuidar dos campos para evitar que a colheita seja um fracasso.

Andrii Pastushenko, gerente geral de uma fazenda de 1.500 hectares a oeste da cidade, perto da foz do rio Dnipro, disse que no outono passado foram semeados 1.000 hectares de trigo, cevada e colza. Agora, no entanto, seria o momento de os trabalhadores entrarem nesses campos, mas, como estão sem acesso a combustível, é inviável. “Estamos completamente isolados do mundo civilizado e do resto da Ucrânia”, afirma. Além disso, muitos dos oitenta funcionários de Pastushenko não conseguem chegar à fazenda porque moram a alguns quilômetros ao norte, do outro lado da linha de frente da batalha.

Outro agravante é que o porto de Odessa, no Mar Negro, a cerca de 150 km a oeste da fazenda de Pastushenko, está completamente parado. Em tempos de paz, grande parte das exportações agrícolas ucranianas chegam aos containers do porto, o mais movimentado do país, mas hoje em dia nenhum navio está saindo porque a cidade encontra-se sitiada pelas forças de Putin.

Com reportagem de Maurice Tamman em Nova York, David Gauthier-Villars em Istambul, Sarah McFarlane em Sydney e Sarah El-Safty no Cairo