A disseminação do surto do coronavírus interrompeu o debate em torno de reformas liberalizantes no país, impondo ao governo Bolsonaro o desafio de reinventar sua agenda e discurso econômicos em novo cenário que tem demandado, a cada dia, “Mais Brasília” –na contramão da retórica e das medidas defendidas pelo ministro Paulo Guedes e equipe desde a campanha eleitoral.
A avaliação de parlamentares e analistas é que nos próximos meses há pouco espaço para votação de medidas não conectadas diretamente ao enfrentamento da crise do vírus, em meio à nova realidade que impôs restrições à movimentação dos parlamentares e, mais importante, passou a demandar a mão forte do Estado e o envolvimento do Legislativo na condução de ações capazes de aliviar os efeitos econômicos da grave crise de saúde pública.
Para o cientista político Rafael Cortez, da Tendências Consultoria, a demora de Guedes em encaminhar as reformas tributária e administrativa ao Congresso já vinha evidenciando as restrições à sua agenda fiscalista dentro do governo, e o choque do Covid-19, que tem forçado países do mundo todo a irrigar suas economias para tentar minimizar o baque da paralisação da atividade, veio reforçar esses limites.
“A leitura é de uma relação mais difícil entre o presidente (Jair Bolsonaro) e o ministro, ou do presidente com a agenda liberal, nesse que sempre foi mais um casamento de conveniência”, afirma, destacando a perda de protagonismo de Guedes neste novo momento.
“A gente não vê mais o ministro da economia na linha de frente, de dar sinal a respeito dos planos do governo. Em parte, esse protagonismo tem sido das lideranças do Parlamento”, acrescentou. “Não me parece que é descartado que em algum momento ele possa deixar o governo.”
Na última semana, a assessoria de Guedes informou que ele passaria a despachar remotamente do Rio de Janeiro, onde reside, para se resguardar do risco de contaminação do coronavírus. O ministro tem 70 anos e, segundo a assessoria, já testou negativo para o vírus em dois exames, realizados nos últimos dias.
Na sexta-feira, Bolsonaro afirmou que ofereceu a Granja do Torto, uma das residências oficias da Presidência, para hospedar o ministro em Brasília. Nesta segunda-feira, Guedes cumpre agenda em Brasília.
Em participação em uma mesa-redonda virtual com executivos da XP, na noite de sábado, Guedes destacou que as medidas para enfrentamento ao coronavírus somam de 4,8% a 5% do PIB, num desvio transitório do foco do governo, que permanece sendo de reformas para retomada do crescimento.
Segundo Guedes, passado esse período de três, quatro meses, o país precisará destravar investimentos e aprovar projetos e reformas no Congresso com esse objetivo. O ministro também afastou a possibilidade de saída do governo, afirmando que isso é “conversa fiada total”.
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Uma fonte do governo próxima ao ministro afirmou na semana passada que, independentemente de onde despache, Guedes segue no comando da agenda.
“Ele continua comandando as reuniões e as ações. Todas as medidas que foram anunciadas foram negociadas e acertadas com ele. O Guedes que dá a direção, ele continua no timão”, afirmou a fonte, que pediu anonimato.
“Suicídio coletivo”
Inúmeras vezes indagado, no decorrer da última semana, sobre a continuidade das reformas, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), evitou descartar a votação de reformas fiscais em 2020. Mas, ao lembrar que o Executivo não encaminhou suas propostas para a tributária e a administrativa, defendeu que primeiro sejam tomadas as medidas emergenciais no curto prazo para o enfrentamento da crise. Cobrou ainda, que o governo assuma o papel de coordenar as ações e oferecer previsibilidade à sociedade nesse processo.
“Eu acho que o governo, se apresentasse um pacote interligado e rápido, nos daria essa tranquilidade da previsibilidade, a gente poderia no momento seguinte já começar a discutir (as reformas)”, disse Maia na sexta-feira, em debate virtual organizado pelo Lide, grupo de empresários fundado pelo hoje governador de São Paulo, João Doria.
“Se o governo nos desse essa previsibilidade, segunda-feira, eu lhe garanto, com isso organizado, nós voltamos à pauta da reforma tributária, que já está na Câmara”, afirmou.
Mais cauteloso ao falar, o deputado Marcelo Ramos (PL-AM), que presidiu a comissão especial da reforma da Previdência, e atualmente comanda outro colegiado polêmico –o que discute a prisão após condenação em segunda instância–, avaliou que o contexto econômico e social mudou e é necessária uma adaptação.
“A questão é simples. As reformas tinham um lógica de austeridade fiscal. Austeridade fiscal agora é suicídio coletivo. O cenário mudou e as perspectivas da economia têm que mudar”, disse à Reuters.
“O caminho agora é emitir moeda, aumentar a dívida pública, usar recursos do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhado) e do FGTS para garantir renda e assim manter algum consumo. Só um irresponsável está pensando agora em austeridade fiscal”, acrescentou.
Ramos aproveitou para defender outra proposta que tem sido martelada por Maia: a de separar do Orçamento principal os gastos de enfrentamento da crise do coronavírus neste ano. O assunto é objeto de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) negociada pelo presidente da Câmara.
Para o líder do DEM na Câmara, Efraim Filho (PB), ainda é cedo para descartar totalmente a possibilidade de análise da agenda de reformas neste ano, mas ele afirma que “o horizonte ficou bem mais distante”.
O avanço das reformas esbarra, ainda, em entraves técnicos e regimentais. Segundo a senadora Simone Tebet (MDB-MS), presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, o ato que regulamentou as sessões remotas do plenário da Casa determina que essa exceção vale apenas para as votações de matérias relacionadas ao combate à crise do coronavírus. Isso impede, portanto, a análise das reformas tributárias e administrativa, ou de outros temas econômicos, por exemplo.
“O ato é claro: tem que ser matéria relacionada à pandemia”, afirmou. “A não ser que mude ato da Mesa do Senado”, acrescentou.
Enfrentamento
Depois de defender que a melhor resposta que o governo poderia dar ao surto do Covid-19 seria prosseguir na aprovação de reformas voltadas ao equilíbrio das contas públicas e à melhoria do ambiente de negócios, Guedes e seu time foram obrigados a começar a abrir as torneiras em resposta ao agravamento do quadro de saúde pública.
Acompanhando movimentos semelhantes das grandes economias, ainda que em escala mais modesta, até pelas importantes restrições fiscais, o Executivo anunciou a antecipação de pagamentos a trabalhadores formais, extensão de prazos para pagamentos de tributos, ampliação de benefícios sociais e medidas para aumentar a disponibilidade dos bancos para oferecer crédito.
Diante da disseminação do vírus no país e no mundo e de críticas de que as medidas para os mais vulneráveis haviam sido tímidas, as ações foram reforçadas com proposta de pagamento de voucher a trabalhadores autônomos e informais – medida que foi reforçada por iniciativa do Congresso.
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, também anunciou uma linha de crédito com recursos do Tesouro para financiar folhas de pagamento de pequenas e médias empresas e a elaboração de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que autoriza o BC a comprar crédito em momentos de crise.
Fábio Ramos, economista do banco UBS, afirma que não se pode dizer que reformas não estejam avançando e nota que o Congresso segue se movimentando, ainda que o teor das medidas analisadas teve que mudar, dadas as circunstâncias extraordinárias. Ele ressalta que o importante é que o país retome o caminho da austeridade fiscal pós-coronavírus.
“Neste momento, trocas de comando, se acontecessem e não forem extremamente bem costuradas, vão assustar. Creio que há confiança na equipe econômica de que, quando tudo isso passar, o ajuste fiscal estrutural continuará”, afirmou.
Cortez, da Tendências, também avalia que a agenda do controle fiscal voltará à pauta quando a crise de saúde amainar, mas ele argumenta que os questionamentos podem ser maiores, em um ambiente que deverá ter mais equilíbrio entre diferentes teses econômicas. “O Covid-19 vai trazer para o debate o papel do Estado na economia”, afirma.