Enquanto a Rússia continua a usar seu gás como moeda de troca, e a Europa busca reduzir a dependência histórica dessa commodity, os preços do produto refletem o período de instabilidade e saltam mais de 400% em relação ao mesmo período do ano passado. E o pior: o prazo para que o continente europeu prepare seus tanques de armazenamento para o inverno está prestes a se esgotar.
- A mudança da estratégia russa relacionada aos fluxos de gás destaca a importância dessa commodity como fonte de recursos para o país.
- Enquanto isso, a Europa se une para reduzir a sua dependência do gás russo à medida que os prazos de armazenamento de inverno se aproximam.
- Devido ao quadro de contínua instabilidade, a previsão é de que a volatilidade do mercado e os preços do gás permaneçam elevados.
Como os produtores, traders e consumidores bem sabem, os mercados de gás têm passado por constantes desafios ao longo de 2022.
Recentemente, uma manutenção anual de dias do duto Nord Stream 1 (NS1) –que, por sinal, já estava planejada— fez com que o limitado fornecimento do produto tivesse de ser reduzido ainda mais. E aqueles que esperavam por um fluxo de gás mais intenso quando o oleoduto voltasse a funcionar ficaram desapontados, já que a Rússia retomou os níveis de fornecimento pré-manutenção (40% da capacidade), e apenas por um breve período.
Ameaça de suspensão total do abastecimento
O alívio dos mercados com o reestabelecimento do fluxo (mesmo que tenha sido abaixo do esperado) durou pouco. Isso porque, mesmo com a crescente preocupação acerca do armazenamento de gás antes da chegada do inverno europeu, o abastecimento continua sendo afetado.
Após ter ameaçado cortar o gás encanado para qualquer país que não pagasse em rublos, agora a Rússia está considerando exigir o mesmo para as exportações de gás natural liquefeito (GNL). E, embora a suspensão total do fornecimento ainda seja um risco, não é a única preocupação.
Para se ter uma ideia da gravidade da situação, das oito turbinas a gás originais, apenas uma está atualmente em operação na estação de compressão de Portovaya, na Rússia. Tem ainda outra que permanece no limbo após ter sido consertada no Canadá e enviada para a Alemanha, com os governos alemão e russo alegando que precisam de papelada ou permissões que o outro ainda não forneceu. Já três outras turbinas foram desconectadas para uma revisão planejada, e outras três estão sem funcionar devido a supostos problemas técnicos.
Ainda em 25 de julho, a Gazprom já havia confirmado que os fluxos de gás do Nord Stream 1 (NS1) cairiam mais 50% (para 363GWh/d (33mcm/d)) a partir de 27 de julho, reduzindo a utilização do terminal para 20% de sua capacidade. E, embora rotas alternativas de exportação estejam disponíveis, analistas do setor observam que a Gazprom não as está usando para cumprir seus compromissos de exportação para clientes europeus.
Reação à chantagem de Putin
Tanto para a Rússia quanto para a Europa, o gás é um produto de suma importância. Inclusive, em um recente discurso em Teerã, no Irã, Vladimir Putin ofereceu um panorama bastante detalhado da dependência global dessa commodity.
Por um lado, vemos a Rússia negociando com os países que não lhe impuseram sanções, como China e Índia, para aumentar as entregas do combustível e colher mais receitas. Já por outro, a Europa se esforça para reduzir o quanto antes sua dependência histórica do gás russo. Confira, a seguir, medidas recente tomadas por países europeus:
- A União Europeia depende da Rússia para obter, em média, 35% de seu gás natural. Para reduzir a demanda, foi aprovada, em 26 de julho, uma proposta de corte voluntário de 15% no gás para cada país membro (com alguns cortes). A votação, realizada após reduções adicionais no fluxo enviado pela Gazprom, foi praticamente unânime. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, disse que, agindo em conjunto, a UE “garantiu as bases sólidas para a indispensável solidariedade entre os Estados membros diante da chantagem energética de Putin”.
- O Reino Unido anunciou que pretende reabrir sua maior instalação de armazenamento, um complexo antigo que foi desativado em 2017 devido ao custo das reformas que se faziam necessárias. Este é um impacto direto da guerra na Ucrânia e faz parte dos esforços do Reino Unido para se livrar do gás russo.
- A Europa também tem considerado recorrer a fornecimentos adicionais do Azerbaijão e da Argélia. Mas, mesmo com essa fonte alternativa, não seria possível compensar todo o volume de gás russo perdido, o que torna o GNL fundamental.
Enquanto isso, a tensão se mantém alta, pois a temporada de inverno começa em 1º de outubro e só resta um mês para que os tanques de armazenamento europeus estejam cheios.
Reabastecê-los terá custos ainda mais altos, devido ao risco de fluxos limitados e da alta volatilidade, embora as importações de GNL estejam ajudando. No entanto, se o fluxo de fornecimento russo se mantiver em 20% da capacidade, será quase impossível que os estoques de gás atinjam os níveis necessários para durar todo o inverno.
Gráfico 1: Níveis de armazenamento (agregados) atuais do noroeste da Europa versus dados históricos
Bem, se há algum lado positivo nessa questão do fornecimento de gás pela Rússia, é o fato de ter destacado a urgência de a Europa se tornar independente energeticamente, ajudando a acelerar a transição energética e a mudança para fontes renováveis.
No entanto, mesmo que diversas iniciativas tenham entrado em modo acelerado, elas levam tempo para entrar em operação.
Como resultado, o que estamos vendo é um crescimento substancial do uso de fontes menos renováveis, com a geração de energia a carvão aumentando globalmente para tentar compensar a redução dos fluxos de gás da Rússia.
Esperamos, no entanto, que esta seja uma solução de curto prazo.
Instabilidade e volatilidade impulsionam o mercado
No momento da redação deste artigo, a volatilidade dos preços reflete o nível de risco e instabilidade nos mercados de gás e a probabilidade de que essas condições continuem por algum tempo.
- Em 2 de agosto de 2022, o TTF Day Ahead estava sendo negociado a € 204 por megawatt-hora (MWh), quase cinco vezes maior do que no mesmo dia no ano passado (€ 42/MWh).
- Após a Gazprom ter anunciado, em 25 de julho, novas reduções no fluxo de envio de gás, os preços ao longo da curva subiram. O TTF DA fechou em € 168,6/MWh, com acréscimo diário de € 6,06/MWh. A SUM 23 alargou o prêmio para o WIN 23, em um valor recorde de 15€/MWh, evidenciando ainda mais o risco que se avizinha.
Gráfico 2: Volatilidade dos preços nos mercados de gás
A expectativa é de que os preços permanecerão voláteis, e as preocupações com o Nord Stream 1 (NS1), altas. Mas, naturalmente, quaisquer desdobramentos relacionados à turbina que se encontra na Alemanha desempenharão papel determinante nas cotações.
Acredita-se que os fluxos permanecerão reduzidos, no mínimo, até que a turbina consertada seja recebida pela Gazprom e instalada. A alemã Siemens teria chegado a afirmar que o transporte da turbina poderia começar imediatamente, então parece que a bola está mesmo no campo da Gazprom. Porém, ainda não ficou claro se a Rússia aumentará a oferta de gás quando (e se) a turbina voltar a funcionar.
Além disso, comentários recentes da Gazprom deram indicações adicionais de que os fluxos de gás foram e continuarão sendo impulsionados por fatores geopolíticos, e não por fundamentos de mercado típicos, o que mantém a previsão de volatilidade e de preços elevados.
Ou seja, a Europa terá que continuar a importar GNL em níveis recordes, esperando que o último corte de 15% na demanda possa ajudar a mitigar os cortes no envio de gás russo e facilitar o abastecimento dos estoques até os níveis necessários.
Moeda de troca global
Sob sanções internacionais significativas e coordenadas, a Rússia nunca foi tão dependente dos fundos obtidos com a exportação de gás. Portanto, Vladimir Putin fará todo o esforço possível para controlar a narrativa em torno do fornecimento de gás, mesmo que, conforme o inverno se aproxima, a Europa tome uma ação unificada para reduzir a demanda e proteger os interesses regionais.
Embora seja difícil prever como, onde ou quando isso terminará, acreditamos que o gás continuará sendo usado como moeda de troca. Enquanto isso, com manobras de cada um dos lados, o mercado pode se preparar para risco de oferta, picos de preços e volatilidade por mais algum tempo.